sábado, 30 de abril de 2011

só, mais uma noite...

Tudo começou com um carregador. E três risquinhos de bateria...

Era o dia da estreia. Do seu primeiro filme. O mesmo que o fizera ser si mesmo. O mesmo que fizera consigo mesmo. O mesmo filme que começara na escola. E começara 'nela. O mesmo de sempre. O mesmo que mudara sempre mais um pouco. Era sempre o mesmo... E sempre por acabar.

A gente que o esperava era sempre a mesma. Sempre a mesma que o esperava. Mas esperava algo diferente. Esperava-o numa sala diferente. Era uma sala melhor de grandes projecções e projectos maiores por assim dizer. Uma sala com portas e paredes e colunas e projector e tela e mística enorme sendo a 3 era a primeira deste filme. A primeira vez que ia por dentro ao cinema...

....passara a semana a correr atrás do filme. Do filme que sendo sempre o mesmo era o seu. Estava anunciado. O filme que sempre os mesmos queriam ver estava anunciado a todos os outros. De maneira diferente do habitual porque habitualmente era diferente. habitualmente não era assim. Habitualmente ele era exigido. Faziam-lhe pedidos directos por mais indirectamente que eles lhe fossem dirigidos. Neste filme não. Ele era ele mesmo que se projectava de encontro a uma tela, depois de uma parede numas traseiras, depois de um lençol vincado, depois de visto em festas em que não pertencia e outras em que não cabia em si, este dia era diferente de todas aquelas vezes em que tinha visto imagem por imagem o mesmo filme de sempre em écrãns de múltiplas janelas. Tantas vezes mais especiais cada uma delas com sabores diferente, nem sempre bem temperado nem sempre com o melhor temperamento.

Este dia era diferente. E chegou ainda a tempo. Ao mesmo tempo que a cópia de Timor, a cópia a um quarto de hora dali do cinema, chegou mesmo em cima do tempo. Do tempo com certeza. Ele preferiu ir a casa. Tinha tempo. Tomar um banho. Havia tempo. Sentir-se civilizado humano o possível.

O dia tinha sido passado a correr para apanhar chuva nas traseiras de uma estrada onde tinha ido de táxi. Para estar ali à chuva com duas pessoas na paragem do autocarro à espera do transporte que nunca mais chegava. Tinha pago o suficiente para um almoço acompanhado. Ele só precisava de fazer um telefonema... O tempo apertava. O tempo do seu filme estava à espera de ter um som condigno com quem tinha emprestado a palavra e usado a sua voz para que melhor se ouvisse. Ele estava ali à chuva sem saber onde era a porta daquela cave onde o esperavam. Era o tempo para juntar um som melhor à imagem melhorada mas os três traços estavam apagados. Não que não ligasse a ninguém mas nem tinha bem como porque os telefones públicos nunca funcionam e numa povoação nunca há mais que um telefone e meio, que o do lado da igreja apenas escuta mas não se deixa ouvir. Mas há sempre um café um tasco onde a merenda sabe sempre melhor que a água que nunca é a mesma. E como é que há tantas águas e nunca é sempre a tal?

Passou o dia a correr. Sem que desse um passo de corrida. Aquele tempo agradável que passou sentado enquanto o som se escorria para a sua caixa azul. Ali estava um tempo que distoava do ambiente lá fora. Mas era do mundo lá fora que se falava. Das companhias e dos Duartes e dos bazares e alguns azares. O tempo passou agradavelmente bem. Amenamente nas mãos de quem sabia o que fazia. Da melhor forma que sabia. E o ambiente passou.

Lá fora o mundo ligava-lhe. Lá fora o mundo esperava-o. E ele sem energia nenhuma. Não teve lata para pedir uma boleia que tinha. Mas educadamente pedira para roubar uma flor. Acelarou estrada fora ainda que tranquilo. E lá deu com um táxi. E apanhou-o. E chegou a tempo ao cinema de entregar a sua caixa cheio de azul, sem rótulo nem legenda. Ofegante. Aquele era apenas o seu filme. Ele sabia-o.

Foi para casa. A tempo de tomar um banho não sem que antes agradecesse ao taxista. O taxista agradeceu, e insistiu eu é que agradeço. Talvez com um jantar partilhado à sua família... Ficou ao cimo da sua rua de sempre. Da mesma rua onde não fez questão de entrar. Quis deixar o dia para trás para abraçar outro à frente. Lavou-se e perfumou-se e trocou-se todo. Montou a cabra montanhesa de sempre e desceu vermelho pela rua. Olhou para o lado mais do que para a frente e escutou o sino na rua certa à hora errada. Chegou exactamente no princípio do seu fim ali. A sessão começara.

'nada mais sagrado num filme do que chegar pontualmente ao cinema' qualquer coisa assim que insistia em dizer ao mesmo tempo que projectava ambições de projeccionista. O sonho pode esperar mas o Sol e a Lua e tudo o resto que os liga, na melhor das hipóteses talvez amanhã lá estejam à mesma hora. Não mais a frescura na flor que colhera. Não mais o respeito neste lugar sagrado.

Não mais a esperança dos espectadores que eram os mesmos amigos de sempre que o recebiam. Não mais o mesmo público. Não mais a bebida a 95% não mais o lucro nem a pipoca crocante a outros tantos tantos que ali não se vendia. Não mais o mesmo artista sem jeito para dar festival. Não mais a mesma correria. Não mais o mesmo dia. Só a mesma mãe, o mesmo pai, o mesmo filme, os mesmos chilreares, o dia seguinte. E o carregador no sítio de sempre.

Tudo isto acabou com um realizador solitário... Vou ver se descanso este dia depois de uma noite carregado de pesadelos....

que filme... *

terça-feira, 12 de abril de 2011

a nossa natureza não nos pertence mas há-que estimá-la e tratar da naturalidade que nos é própria mesmo que distante.